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terça-feira, 25 de maio de 2010

Eu me lembro bem... O maior jacaré da história de Porto Walter

O texto a seguir foi publicado em "Quatro Colinas" no ano de 2006.
Trata-se de uma lembrança infantil(quase adolescente) na Porto Walter dos anos 80.
Na história, personagens portuwaltenses como Luís Ovídio, Bentinho, Celestino, Chico Cário(meu pai) e Fanquinho da Maria Régio. Chamava-se Kitola...

Kitola

E reapareceu depois de muitos anos apavorando os ribeirinhos e pescadores, e, à medida que o tempo passava, mais crescia a dimensão do seu mito, mais tomava proporções assustadoras e tenebrosas, galgando até as terras firmes mais altas e os centros mais afastados e incomunicáveis da localidade.

Tinha apenas três patas. Uma das dianteiras, fora decepada na distante e incerta data de dez ou doze anos, por Luiz Ovídio, preto bom e sorridente, num marisco de facho. Sendo ele ainda filhote e estando embaixo de uma moita, foi acertado por um terçado. Se era o mesmo jacaré que agora emergia das profundezas do lago, era impossível provar, até porque, naquela época, matar jacarezinhos era quase obrigação dos fachiadores, mas como o Luís Ovídio recordava ter cortado apenas a mão de um jacaré, ficou lembrado em todas as conversas em que Kitola era assunto principal.

O fato reportado aconteceu no Lago do Humaitá e foi lá que a besta aquática fez sua estréia de terror e vingança. Parecia incorporar um ser monstruoso e vingativo. Bastava apenas a luz de uma poronga para despertar a fera. Partia sobre as canoas com olhos de fogo, disposto a tudo, e se fazia urgente recuar, apagar a luz e buscar um ponto mais tranqüilo do lago.

A situação ficou insustentável. Pescar à noite era suicídio, quando inevitável o faziam em parceirada e mesmo assim só uns poucos ainda insistiam na prática.

Com o final do verão e a chegada dos repiquetes, o lago tomou água e por força de lei pararam de pescar. Cessaram também os comentários Todos foram salvar suas plantações de várzeas e praias, que o rio todos os anos insiste em comer. Em poucas semanas os barrancos foram diminuindo e alguns sumiram. Rio e lago, transformaram-se numa única massa líquida, separadas apenas pela mata. Naquela letargia e mansidão de águas, Kitola passou mais um inverno.

Quando o rio já baixava bem, voltava ao seu leito e os baixos devolviam água preta pelas sangras, é que deram notícia de um inseto que saía do Lago do Humaitá, por um igarapezinho que liga o sangradouro deste ao Riozinho Cruzeiro do Vale. Rezavam os depoimentos que era como se fosse uma varação de canoa aquele arrastado de duas braças de largura. Cipós e gravetos iam formando balseiros nas margens do igarapé. Afirmavam alguns ser possível, atualmente, navegar pelo caldal antes temporário, dragado por aquele inseto. 

E as especulações assustavam: “É bicho pra mais de trinta palmos, uma espécie nova, talvez até o cruzamento de Tinga com Preto, ou até com cobra Sucuriju”. Exageros à parte, o certo é que por onde passou na tal varação, e nos lugares onde a lama da inundação já endurecia, poderia se ver claramente a marca dos rastros do animal, um deles era uma anomalia, como a ponta de um espeque e entre os rastros uma saliência como uma quilha de canoa.

Não tardou muito e já ganhava novamente as manchetes dos fuxicos. Pescadores do Lago do Cruzeiro deram notícia de uma fera nos moldes de Kitola, com a mesma ferocidade, em alguns casos até maior. Passava as noites esturrando e atacando canoas. Era ele com certeza, só podia ser, mas como? Os homens mais experientes do lugar traçaram o percurso da migração. Segundo o Chico Cário, Kitola saiu do lago pelo igarapezinho e foi ter mão no Riozinho, daí subiu um pouco, ganhou a mata saindo no Lago do Cruzeiro. O Lago do Humaitá voltou a ser o mesmo lago tranqüilo e farto. O terror agora estava a cinco praias acima.

No tempo já mais preciso de cinco ou sete anos, Kitola trafegou tranqüilamente por todos os lagos da região, se não presente, pelo menos no soçobro que inspirava.

De acordo, os homens do lugar, acharam por bem encerrar aquela situação de medo. Declararam guerra aos jacarés. Começou a caçada. Formaram-se diligências aos lagos, armados de lanternas, carburetos, rifles e espingardas carregadas com palanquetas de chumbo. Armaram estratégias, limaram os arpões. Mataram alguns, balearam outros, (apesar de todos saberem que em jacaré só se atira numa tabuleta atrás dos olhos), mas um, com uma pata de espeque, nada. Sumira de novo.

Mas eis que um belo dia, após uma chuva daquelas, com o rio já quase na tampa, veio quebrando canarana no peito e deslizou para a água. Vinha do Laguinho da Jacinta no antigo Seringal Tavares de Lira e aí teve início a caçada mais famosa e desigual que Quatro Colinas já viu. Armas de todos os calibres e marcas, CBCs, Rossis, Boitos e até Quebra-Joelhos. eram desmoralizadas. Vinha no meio do rio, feito uma balsa de arapari, alheio aos tiros e a fumaceira, ao sabor das águas, soberano. Os tiros eram incontáveis, e as canoas dispostas de ambos os lados, já ofereciam clima para alguma desgraça. Foi preciso organizar o tiroteio.

Com a munição já quase acabando, é que alguém lembrou do Celestino, exímio arpoador e de fama feita. Como se demorou, e o cortejo do imortal Kitola já atingisse o porto do Bentinho, os acontecimentos precipitaram-se. Bentinho chamou um piloteiro, entraram na canoa e mandou remar em direção ao tiroteio. 

Como viesse em direção contrária, a artilharia suspendeu fogo. Em pé no bico da proa, fez pontaria e atirou. Pela primeira vez, Kitola pareceu sentir o impacto do tiro, deu um sopapo, virou de peito e, antes que afundasse, Bentinho tentou segurá-lo. Não conseguiu. Ao tocar em Kitola, foi arremessado na água e, quando milagrosamente emergiu, foi resgatado com o braço partido e o osso da cana para fora. Foi levado ao porto e de lá a Cruzeiro do Sul. Inspirava cuidados.

Poucos minutos da tragédia emergia outra vez. Continuava insolente, como se fosse mais que um jacaré, fosse uma visagem. Como o Celestino não veio, foi arpoado com grande risco e suspense, por um aprendiz de nome Fanquinho. Foi rebocado ao porto, e morto finalmente a golpes de machado e espeto. Medido a palmo de mão, dezoito precisamente, e o detalhe da mão cortada, uma anomalia, um aleijão. Tiraram o couro, e a carne foi retalhada para todos na comunidade.

Kitola foi preparado em todas as cozinhas, desde a do Internato das Irmãs Dominicanas até a do subprefeito. Hoje, imagino que aquele foi o dia de maior fartura naquele lugar, tudo grátis, sem balança, sem contrapeso. 

Imagino que o que movia aqueles homens rudes, além da fome, era a mórbida vontade de ver um jacaré que sobreviveu com três patas. Por outro lado, Kitola, não suportando mais ser diferente e alvo de tanta antipatia, resolveu pôr fim à própria vida, entregando-se ao inimigo de modo tão fácil, armando o cenário de sua vingança, também atingindo a mão de um inimigo com as armas que dispunha.
 
Graças à Medicina, Bentinho não perdeu a mão, mas ficou marcado para sempre. Kitola não tinha nada de excepcional, era apenas um Jacaré Preto, com uma mão decepada e sede de vingança. Nada mais.